POPE

“Ninguém se salva sozinho”. Há cinco anos, a oração do Papa, abraço de esperança a um mundo “no mesmo barco” na tempestade da pandemia

as palavras da meditação do Papa sobre o Evangelho de Marcos, 4,35-41

 Há cinco anos, a 27 de março de 2020, na parvis da Basílica de São Pedro, o Papa Francisco dirigiu a sua oração e a sua bênção urbi et orbi a um mundo atingido pela pandemia, abalado pela incerteza como os discípulos no barco no meio da tempestade (Mc 4, 35-41).

Escutemos hoje de novo as suas palavras, um convite à conversão e à esperança num tempo difícil.

«Ao entardecer» (Mc 4,35). É assim que começa o Evangelho que escutámos. Há semanas que a noite parece ter caído. Uma escuridão espessa adensou-se sobre as nossas praças, ruas e cidades; apoderou-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador, que paralisa tudo à medida que passa: sente-se no ar, sente-se nos gestos, nota-se nos olhares.

Encontramo-nos assustados e perdidos. Tal como os discípulos do Evangelho, fomos apanhados de surpresa por uma tempestade inesperada e furiosa. Apercebemo-nos de que estávamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, todos necessitados de se confortarem uns aos outros.

Neste barco, estamos todos. Como aqueles discípulos, que falam a uma só voz e, angustiados, dizem: «Pereçamos» (v. 38), assim também nós nos apercebemos de que não podemos ir cada um por si, mas apenas juntos.

É fácil encontrarmo-nos nesta história. O que é difícil é compreender a atitude de Jesus. Enquanto os discípulos estão naturalmente alarmados e desesperados, Ele fica na popa, na parte do barco que primeiro se afunda. E o que é que Ele faz? Apesar do tumulto, dorme tranquilamente, confiante no Pai - é a única vez no Evangelho que vemos Jesus a dormir -. Quando é acordado mais tarde, depois de ter acalmado o vento e as águas, dirige-se aos discípulos em tom de repreensão: «Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» (v. 40).

Tentemos compreender. Em que é que a falta de fé dos discípulos contrasta com a confiança de Jesus? Não tinham

Não deixaram de acreditar nele, pelo contrário, invocam-no. Mas vejamos como o invocam: «Mestre, não te importas que pereçamos?» (v. 38).

Não te importas: eles pensam que Jesus se desinteressa por eles, que não se preocupa com eles. Entre nós, nas nossas famílias, uma das coisas que mais magoa é quando ouvimos

dói é quando ouvimos: “Não te importas comigo?”. É uma frase que magoa e provoca tempestades no coração. Deve ter abalado Jesus também.

Porque ninguém se preocupa mais connosco do que Ele. De facto, uma vez invocado, ele salva os seus discípulos desconfiados.

A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa expostas as seguranças falsas e supérfluas com que construímos as nossas

com as quais construímos as nossas agendas, os nossos projectos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixámos adormecido e abandonado aquilo que alimenta, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a nu todas as intenções de “empacotar” e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de nos anestesiar com hábitos aparentemente “salvadores”, incapazes de apelar às nossas raízes e evocar a memória dos mais velhos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades.

Com a tempestade, caiu o truque dos estereótipos com que disfarçamos os nossos “egos” sempre preocupados com a nossa própria imagem; e aquela (bendita) pertença comum a que não podemos fugir: a pertença como irmãos.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?»

Senhor, a tua Palavra desta noite afecta-nos e diz-nos respeito, a todos nós. Neste nosso mundo, que Tu amas mais do que a nós, avançámos a toda a velocidade, sentindo-nos fortes e capazes em tudo. Ávidos de lucro, deixámo-nos absorver pelas coisas e atordoar pela pressa. Não parámos perante os vossos apelos, não acordámos perante as guerras e as injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente doente. Seguimos em frente sem nos deixarmos abater, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, que nos encontramos em mares agitados, imploramos-te: “Acorda, Senhor!”

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?»

Senhor, fazes-nos um apelo, um apelo à fé. Que não é tanto acreditar que Vós existis mas vir a Vós e confiar em Vós.

Nesta Quaresma, ressoa o teu apelo urgente: “Convertei-vos”, «convereti-vos a mim de todo o vosso coração» (Jl 2,12). Chamas-nos a aproveitar este tempo de provação como um tempo de escolha. Não é um tempo do vosso julgamento, mas do nosso julgamento: um tempo para escolher o que conta e o que passa, para separar o que é necessário do que não é. É um tempo para reorientar o curso da vida para Ti, Senhor, e para os outros. E podemos olhar para tantos companheiros de viagem exemplares, que, com medo, reagiram dando a vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas. É a vida do Espírito capaz de redimir, valorizar e mostrar como a nossa vida é tecida e sustentada por pessoas comuns - geralmente esquecidas - que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas nem nas grandes passarelas do último desfile, mas que, sem dúvida, estão a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história de hoje: médicos, enfermeiros, empregados de supermercado, faxineiros, cuidadores, transportadores, policiais, voluntários,

padres, freiras e muitos, muitos outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. Perante o sofrimento, onde o verdadeiro verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «para que todos sejam um só» (Jo 17,21).

Quantas pessoas exercitam a paciência e infundem esperança todos os dias, tendo o cuidado de não semear o pânico, mas a corresponsabilidade. Quantos pais, mães, avôs e avós, professores e professoras mostram aos nossos filhos, com pequenos gestos quotidianos, como enfrentar e ultrapassar

uma crise, reajustando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração. Quantas pessoas rezam, oferecem e intercedem pelo bem de todos.

A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé»

O início da fé é saber que temos necessidade de salvação. Não somos auto-suficientes, sozinhos afundamo-nos: precisamos do Senhor como os antigos marinheiros das estrelas.

Convidemos Jesus a entrar nos barcos da nossa vida.

Entreguemos-lhe os nossos medos, para que ele os vença. Como os discípulos, experimentaremos que, com Ele a bordo, não há naufrágio. Porque este é o poder de Deus: transformar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas más.

Ele traz a serenidade nas nossas tempestades, porque com Deus a vida nunca morre!

O Senhor desafia-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e a ativar a solidariedade e a esperança capazes de dar solidez, apoio e sentido a estas horas em que tudo parece naufragar. O Senhor acorda para despertar e reavivar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz fomos salvos.

Temos um leme: na sua cruz fomos redimidos. Temos uma esperança: na sua cruz fomos curados e abraçados para que nada nem ninguém nos possa separar do seu amor redentor.

No meio do isolamento em que sofremos a falta de afeto e de encontros, experimentando a falta de tantas coisas, ouvimos mais uma vez o anúncio que nos salva: ele ressuscitou e vive ao nosso lado.

Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. O Senhor desafia-nos, a partir da sua cruz, a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e encorajar a graça que habita em nós. Não apaguemos a chama apagada (cf. Is 42,3), que nunca adoece, e deixemos que ela reacenda a esperança.

Abraçar a sua cruz significa ter a coragem de abraçar todas as contrariedades do tempo presente, abandonando por um momento a preocupação com a omnipotência e a posse, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar.

Significa ter a coragem de abrir espaços onde todos se sintam chamados e permitir novas formas de hospitalidade, de fraternidade e de solidariedade. Na sua cruz, fomos salvos para acolher a esperança e deixá-la fortalecer e sustentar todas as medidas e caminhos.

Abraçar o Senhor para abraçar a esperança: esta é a força da fé, que liberta do medo e dá esperança.

«Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé»

Queridos irmãos e irmãs, deste lugar, que narra a fé rochosa de Pedro, esta noite gostaria de vos confiar a todos ao Senhor, por intercessão de Nossa Senhora, a saúde do seu povo, a estrela do mar tempestuoso. Que desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós a bênção de Deus, como um abraço consolador.

Senhor, abençoai o mundo, dai saúde aos corpos e conforto aos corações. Pedis-nos que não tenhamos medo. Mas a nossa fé é fraca e temos medo. Mas Tu, Senhor, não nos deixas à mercê da tempestade. Repetes mais uma vez: “Não tenhais medo” (Mt 28,5). E nós, juntamente com Pedro, «lançamos sobre Vós todas as nossas preocupações, porque Vós cuidais de nós» (cf. 1 Pd 5, 7).